3ª Edição - ano I - Outubro/2009
Olá, amigos! Bem-vindos mais um vez!
Nesta terceira edição, além da nossa própria produção de textos e imagens, o blog do grupo Interseção traz também alguns trabalhos da artista plástica Sheila Mancebo, que vem participando de importantes exposições de arte contemporânea no Rio de Janeiro.
Boa leitura!
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Duas vidas
Eu precisaria ter duas vidas:
uma para me perder,
e outra para te achar.
Duas vidas para a vida se tornar completa.
Eu precisaria ter duas vidas:
uma para cometer todos os crimes, todos os erros;
e outra para cumprir as penas ao teu lado.
Uma vida para gastar no vício, no pecado.
E outra para rezar contigo as contrições.
Uma vida para trabalhar, estudar, construir...
E outra apenas para vadiar contigo.
Eu precisaria ter duas vidas:
uma para conhecer o mundo, viajar até as estrelas;
e outra para descobrir tuas vielas, teus caminhos.
Uma vida inteira de andanças, sedes e angústias.
E outra de prazeres infinitos em ti.
Eu precisaria ter duas vidas:
uma para ter todas as doenças, pestes e perigos;
e outra para ser salvo por ti.
Uma vida completamente desperdiçada.
E outra completamente entregue a ti.
Eu precisaria ter apenas uma vida.
Com você.
[ Marcelo Souza ]
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João - João
Quantas vezes, tua cabeça de papel na minha mão?
Quantas vezes, joão-de-pedra, joão-de-barro, joão-de-chão?
Chão de Sevilha, recifense de chão?
Chão de Itabira, Cordisburgo de chão?
Chão pantaneiro, do Rio e mineiro de chão?
Oh, João, eu não sei nada, sou só desconfiado
e tenho só o pecado de amar um irmão -
que é o próprio diabo e é são,
que é a própria correnteza e a mansidão.
Um irmão que é rio e é chão
que corta Minas e o corta o sertão
que leva a Pasárgada, que sai de tua mão -
e faz um barulho de trem.
Porque, João, é bom que se diga
a toda mão amiga
que toda flor fura o chão, que toda flor fura a vida
que toda flor é contramão.
Porque toda flor fura o céu e toda flor fura o chão.
Porque toda flor fura a fraqueza, a exatidão.
Porque, João, toda flor é um ventre e é compaixão.
João, João, mesmo que sejas Manoel, Carlos, Cecília,
o teu nome é João, que é o nome da espécie que fura o chão.
Mesmo que sejas Augusto, Jorge ou Raquel,
o teu nome é João, que é o nome da espécie que irriga o chão.
Mesmo que sejas Ferrera, Adélia, Gonçalves és João,
que é o nome dessa espécie que já é a nação.
És João e tua cabeça de papel será sempre servida como pão,
como hóstia, como prêmio, como a anunciação.
Porque João é o nome da flor que irriga o chão.
[ Máximo Heleno ]
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Um conto
À pele clara vicejavam silêncio, macios ao toque ou sopro. Iridescente, a luz loura de seus pêlos chamava – um convite pouco discreto, mas suscitando sempre a dúvida. Sim. Não.Ou. Ele queria ficar ali indefinidamente – via na lua da tarde a lua da noite insurgir vaga e argentina. Respira, palimpsesto de si mesmo arqueja levemente o corpo, olha-a por cima e menos sussurra que pensa. Falar o quê, melhor: por quê? Não se mova, deixa pousar o tempo sobre, esquece o que eu disse e o que eu não disse, assim, levanta o teu abdômen, relaxa, respira... – a noite vem para ambos, o controle é dele e pensa: Estou perdido, não posso transparecer, e... ela não diz?
Lembrou das contas feitas no dia e as pedras que teve que quebrar. Pessoas e ruínas... no que se aparentam? conhecê-la foi fácil, chamá-la, confuso, detê-la, agradável, retê-la, visceral. Sua fé o rendera e agora queimava uma brasa por dentro. Ele lembrou vagamente de uma canção que falava daquilo. Sentiu-se ridículo e teve uma certeza mais ridícula ainda: amava-a.
[ Luiz França ]
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Pequeno Inventário
Minha dor de existir
Minha calma perdida
Minha história não começada
Minha oração sem resposta
Respostas não perguntadas
Invejas desnecessárias
Minha escova de dente
Minha riqueza sem uso
Meu estatuto furado
Meus sapatos parados
Minha espera
Minha tosse
Minha espada sangrada
Minha patetice
[ Marcelo Souza ]
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